06 agosto 2007

Diário

Reproduzo aqui um artigo da revista Piauí desse mês. Um pouquinho da paranóia que rola na gringa por causa de uma meia dúzia que resolveu se explodir.


diário

À disposição de sua magestade


Depois de um vôo de pesadelo, no qual o uísque, o vinho e o remédio contra a Aids me levaram a gritar palavras vulgares, fui atirado num calabouço vitoriano, na companhia de traficantes e estupradores

por
Peter Kurth


Estas notas fazem parte de um diário que escrevi enquanto estive encarcerado, em dezembro e janeiro, na Prisão de Sua Majestade de Wormwood Scrubs, em Londres. Eu jamais havia pisado em uma cadeia. Fui preso por uma combinação de forças incontroláveis. Primeiro, por minha própria teimosia falastrona, que já me causou outros problemas na vida. Segundo, por causa de uma comissária de bordo, provavelmente exausta e desprovida de qualquer senso de humor. Terceiro, pela tensão que se tornou viajar de avião depois das ameaças, reais e imaginárias, promovidas pela “guerra contra o terror”.


No dia 6 de dezembro passado, no aeroporto JFK em Nova York, embarquei num vôo da British Airways para uma viagem de quatro dias de trabalho em Londres. Como o meu passaporte iria expirar em sete dias, planejei estar de volta antes disso. Não sabia – ou havia esquecido – que, para entrar na Grã-Bretanha, a lei exige do viajante um passaporte válido por seis meses.

Era quase meia-noite quando embarcamos. Eu já havia tomado umas doses de uísque escocês durante meu jantar, num desses bares impessoais de aeroporto. Tudo poderia ter corrido bem se: a) depois de mais ou menos uma hora de vôo, eu não tivesse notado o sumiço do meu laptop; e b) tivessem me colocado num assento confortável, e não num claustro feito para provocar coágulos nas minhas pernas. Há décadas sou soropositivo e tenho neuropatia periférica nas duas pernas, o que me impede de ficar sentado, sem me mexer, por mais de seis horas.

Sim, eu deveria ter avisado a companhia sobre minha condição. Mas revelar-se soropositivo é algo que não se costuma fazer em voz alta, muito menos na frente de 400 pessoas. Outra coisa que nem me passou pela cabeça é que um dos remédios que tomo — o ritonavir — e que faz parte do coquetel anti-AIDS, pudesse potencializar de maneira incontrolável os efeitos do álcool no organismo. A combinação remédio, uísque e mais uma garrafa de vinho a 10 mil metros de altitude se mostrou incontrolável.

Eis os meus pecados: sim, houve uma discussão acalorada quando os comissários se negaram a passar um rádio para o aeroporto para saber sobre o meu laptop, e também quando se recusaram a me trocar de assento. Gritei palavras vulgares. Muito vulgares, admito.

Fui me sentar no fundo do avião, numa área mais ou menos desimpedida, onde ficam guardados os escorregadores de borracha usados numa emergência. A vida inteira vi passageiros repousando o traseiro naquele setor. Mas os tempos mudaram, e hoje sentar-se ali equivale a “pôr a aeronave em risco”, um crime da mais alta gravidade segundo as novas leis antiterrorismo. Coisa que dá no mínimo dois anos de cadeia. Eles me falaram tudo isso, mas não me mexi do lugar.

Na manhã seguinte, quando pousamos no aeroporto de Heathrow, desci do avião escoltado por dois policiais londrinos — não bobbies tradicionais, com seus capacetes engraçados, mas dois sujeitos vestidos à moda da SWAT. Levaram-me diretamente para a delegacia de polícia de um bairro sombrio a oeste de Londres. Depois de ser advertido e formalmente interrogado na frente de um defensor público, percebi que a coisa iria longe. Meu passaporte se tornara “suspeito” e a compra da passagem na última hora, para não falar da história do lugar no avião, fez com que eu me tornasse uma espécie de jihadista clandestino.

Depois de um dia e uma noite inteiros de isolamento, fui levado a um tribunal, onde me acusaram de “pôr a aeronave em risco” , além de algo semelhante a “mau comportamento”. Quer dizer que eu não sabia que a “agressão verbal” era um crime na Grã-Bretanha?, perguntou-me um policial. Eu não sabia. E que são as leis britânicas que valem a bordo de um avião britânico? Não, eu não sabia. Na mesma noite, fui transferido para a prisão.

Escrevi muito mais que está sendo publicado aqui. Uma coisa que não vai aparecer é a atividade sexual na prisão, que é mais ou menos constante, brutal e de curta duração. Na medida em que sou “assumidamente gay”, isso se mostrava ainda mais complicado. A lei velada da prisão é que tudo fique em segredo, e que alguém abertamente homossexual será surrado com violência. Isso exigiu que eu voltasse a esconder que era gay, pela primeira vez em muitos anos, enquanto me submetia, calado, aos caprichos dos valentões.

Agora, meses depois do ocorrido, vejo-me tentado a fazer troça da experiência. Mas a verdade é que ela foi degradante, desumanizadora, debilitante, aterrorizante, ruinosa e, no fim das contas, altamente nociva à minha saúde física e mental.

TERÇA-FEIRA, 12 DE DEZEMBRO Primeiro dia inteiro aqui. Ainda não recebi os remédios para o HIV, o que é minha maior preocupação. Tento não me preocupar com a família, pois não há o que eu possa fazer. Procuro não encarar ninguém nem olhar de maneira “errada” (embora não dê para saber muito bem o que é isso). Amanhã, banho — o primeiro da semana. Estou fedendo. Não se tem idéia do valor do cigarro, até se entrar aqui. As pessoas aceitam trocar qualquer coisa por cigarros. Dei cigarros demais num primeiro momento. Acho que vou ter de largar o fumo — mas como, neste lugar? Faz uma semana que não leio jornal algum, só vejo televisão. Meu companheiro de cela, Mick, não consegue ficar parado. Muda de canal o tempo todo, toma incontáveis xícaras de chá e defeca muito na privada aberta, que só tem um lençol pendurado na frente. Estou rezando, literalmente, para acalmar o espírito. Tento ficar calmo, me esforço, me comporto bem.

QUINTA-FEIRA Médico hoje. Entre os quatro que me atenderam, esse foi o primeiro que me pareceu decente e competente. Aparentemente, a polícia escreveu “contagioso” na minha ficha. Os carcereiros disseram que devo manter isso em segredo. Se alguém perguntar sobre os comprimidos, respondo que são para pressão alta ou colesterol ou as duas coisas. Anoto alguns itens de agradecimento:

1) A prisão me livra do Natal e do Ano Novo (e, pelo jeito, da Páscoa)

2) Alívio temporário mas substancial das minhas preocupações financeiras

3) Tempo de sobra para escrever

4) Tempo de sobra para pensar

5) Tempo de sobra para ler

6) Tempo de sobra para dormir

7) Excelente material

8) Formação do caráter — você é um homem ou um rato?

9) Eis-me afastado dos rituais e da rotina — só o que existe aqui é real

10) Pode haver mais, mas não sei o que será.

SÁBADO Mick foi embora hoje de manhã. Achei que iria passar o dia sozinho, mas chegou uma funcionária da embaixada americana. Assino um documento proibindo que qualquer informação sobre o meu caso seja passada à imprensa. E autorizo que a delegação americana no Congresso seja informada de todos os passos. Também me chegam papéis para a renovação do passaporte, mas vai ser impossível preenchê-los direito. Não tenho como tirar fotos aqui nem sei o número do passaporte expirado, que ficou na “recepção” da prisão. Sou transferido para a Ala C.

SEGUNDA-FEIRA Leio Código da Vinci. Que diabo de livro é esse? Como foi que chegou a fazer um sucesso gigantesco? Ele é rasteiro. Não há momento de tensão ou dúvida quanto ao final da história. Mas, antes do livro, eu jamais diria que o Santo Graal pudesse ser a vagina de Maria Madalena.

TERÇA-FEIRA Tenho um novo companheiro de cela cujo apelido é Stanton. Ele fazia parte de uma gangue e foi preso por “conspiração para furto”. Tem 25 anos, é bombado, preto e muçulmano. Trouxe um verdadeiro carregamento de sacolas com comida, roupas, aparelhos eletrônicos, o diabo a quatro. Ele é limpo. Muito. Esfrega tudo com papel higiênico antes de tocar. Nós dois dormimos bem. Acho que estou começando a pegar o jeito da coisa.

Ficou claro que não tenho o menor interesse em não fumar. Quando saio para os meus “tratamentos” médicos, de manhã, me surpreendo percorrendo o chão com os olhos, à procura de bitucas. De vez em quando, alguém me dá um pacote de tabaco, sem o papel para enrolar. Ou me dão os papéis sem o tabaco, esperando que eu cate as bitucas do chão e faça cigarros “novos”.

Discussão com Stanton . Desconfio que seja muçulmano só por protesto. Mas ele tem um tapete para as orações, e reza sempre. Há cartazes pregados em cada piso da penitenciária com setas apontando para Meca. Stanton começa logo dizendo que a democracia é incompatível com o Islã. “Tudo no Islã é estruturado de uma vez por todas – existe um Deus e nada mais é necessário. Ninguém precisa de intermediários. Como é que Deus pode ter um filho? Se fosse assim, também pode ter um tio ou uma tia, não é?” pergunta ele.

Conto que meu pai se converteu e que a atual mulher dele, Najat, é marroquina. As filhas do casal, minhas meio-irmãs, seguem a religião muçulmana. Stanton fica bastante impressionado, acho que marquei um ponto. Ele compreende perfeitamente a estrutura familiar do meu pai quando explico que é Najat quem manda na casa. Acrescenta que todo homem precisa casar, pois do contrário “tudo é tentação”.

Falamos sobre televisão. Também nela “tudo é tentação”, com todas essas mulheres gostosas rebolando”. Isso soa muito estranho vindo de um criminoso que também é cafetão. Só que Stanton não se considera um pecador, no sentido cristão do termo, e sim alguém que foi induzido a pecar. Não existe pecado original no Islã, só a tentação. Stanton explica: “Um dia você vai se apresentar diante de Alá, Ele vai lhe fazer perguntas e é melhor você ter boas respostas, porque quem pecou não foi Ele, foi você”.

QUINTA-FEIRA Dia triste, triste, triste — deprimido — último (meio) cigarro já fumado. Stanton comenta que a prisão o deixa “furioso e violento”. Acrescenta: “Na verdade, eu não sou assim. Mas essa merda me deixa furioso. A prisão derrete a sua cabeça. Fico com vontade de matar alguém”.

SÁBADO Stanton foi embora. Para o lugar dele, veio o Phil. Ele deve ter a minha idade, um pouco mais, talvez, e lhe disseram que o colocariam na cela comigo porque somos “os dois inteligentes”, e estamos presos pela primeira vez, “o que faz com que possamos nos dar bem”. Phil é um sul-africano branco, preso por tráfico internacional de drogas — uma quantidade considerável de cocaína — que trouxe de Boston via Trinidad. Recebeu a droga em Caracas e diz que implorou a “eles” (o cartel) para não fazer a escala em Trinidad, o que seria (e foi) uma bandeira para a alfândega de Heathrow. Phil está realmente encrencado, pode pegar até dez anos.

Meu pedido para trabalhar na prisão foi bem recebido. Devo dar aula para analfabetos, escrever para a revista da prisão, ajudar nas aulas de composição literária e de inglês para estrangeiros. Uma das professoras me perguntou quanto tempo eu ia passar “aqui dentro”. Quando respondi que não sabia, ela me disse: “Bem, com a sua qualificação e a minha sorte, deve estar fora daqui dentro de três dias”. Duvido muito. A pilha de documentos que me foi enviada hoje de manhã pelo defensor público era assustadora em termos de volume e duração potencial da sentença – dois anos – caso insistam na acusação de “pôr a aeronave em perigo”. Melhor não pensar a respeito.

DOMINGO Véspera de Natal. Não sinto A MENOR emoção com relação ao Natal. Quero que chegue o fim do dia e que eu fique longe desses corais e sermões reciclados sobre “paz”. Curiosamente, não permitem visitas na véspera e no dia seguinte ao Natal. Mas acho que iria mesmo perturbar todo mundo. Elizabeth, minha sobrinha, mandou-me um cartão, dizendo: ‘Ei, Tio Pete, espero que este Natal seja melhor do que a maioria dos outros para você’. Minha mãe também mandou um, tentando transparecer calma, mas sei que ela não está calma.

SEGUNDA-FEIRA Dia de Natal. Um presente de Natal de fulano? Nunca aprendi o nome dele. É um iraniano doido, que fica sozinho na cela. Usa uma dessas versões muçulmanas do kipá. Enquanto espero meus remédios, ele me vê pescando as bitucas do chão. “Não, não, espere!” grita. Aparentemente, quer me dar um pouco de tabaco, sem cobrar nada, mas a porta da sua cela está trancada. Ele embrulha um pouco do fumo em papel higiênico e o passa por debaixo da porta. Falo que vou pagar e ele diz que é um presente. Ele quer saber como vim parar aqui (isso tudo falávamos gritando). Quando conto, ele não acredita. Mais tarde o encontro no pátio, conversando em farsi com uns amigos e chutando latas. De repente, ele grita: “Ei, América! Homem de Nova York! Da próxima vez, melhor explodir a porra do avião. Não puxe a faca, se depois não quiser guardá-la coberta de sangue”. Ele me chama de “Bush” e todo mundo ri. Quando aceno com a mão, ele berra: “Não sou talibã!”.

TERÇA-FEIRA Passei por uma experiência perigosa e assustadora na cela de Jack, o prisioneiro a quem eu devia estar dando aulas. Fui conferir se ele tinha avançado na leitura quando um desconhecido pulou do beliche de cima em cima de mim. Ele me imprensa na parede e grita que fui lá para roubar. De repente, Jack sai do banheiro e... como dizê-lo?... os dois se revezam. Estou tonto, imprensado contra a parede, mas o que posso fazer? Naquela ala, eles são poderosos, têm privilégios especiais. Eles me avisam que dali por diante eu “pertenço” a eles.

Fiquei com medo de verdade — este lugar passou a me parecer muito hostil de uma hora para outra. No jantar, o parceiro de Jack faz questão de me olhar com ódio e passar o dedo de um lado ao outro da garganta. Conversei com uma das carcereiras. Omiti a parte do “revezamento”, mas disse que estava sendo ameaçado. Ela disse que ia “ter uma conversa com ele”, o que provavelmente vai piorar ainda mais as coisas, é claro.

QUINTA-FEIRA Hoje é o 60º aniversário de casamento dos meus pais. Estranhamente, dormi muito bem. De manhã, tentei cumprimentar meu inimigo. Ele se negou. Alguma coisa congelou dentro de mim. Lembrei do conselho da minha mãe, de sempre encarar os valentões: “Eles acabam recuando”. Acho que consegui transmitir a esse imbecil que, por mais poder que ele ache que tem na ala, eu tenho mais, ou posso mobilizar mais. Posso convocar a embaixada americana!

SÁBADO Morte (ou, melhor dizendo, assassinato) de Saddam Hussein. Difícil descrever o silêncio de hoje aqui — é sinistro. Duvido que alguém que entrevistasse algum preso muçulmano— supondo que lhe respondessem a verdade — encontrasse muitos “partidários de Saddam”. Mas o problema não é esse. É a maneira como a coisa foi feita, e em qual momento: na véspera do Eid al-Adha, mais um dos inumeráveis “dias mais santos do Islã”.

Panfletos foram distribuídos por toda a Ala C contendo instruções sobre os preparativos para o dia santo. Cito algumas: acorde cedo; prepare-se para a limpeza pessoal; vista-se usando as melhores roupas disponíveis, novas ou usadas, mas limpas; use Itr (perfume religioso); tome o café-da-manhã depois do sacrifício, se estiver fazendo sacrifício; use dois caminhos diferentes para ir e voltar do local das orações (os lados esquerdo e direito dos corredores).

QUARTA-FEIRA, 3 DE JANEIRO Ninguém apareceu para a visita. Eu aguardava os advogados, que ainda nunca vi. Quis o destino que o único outro detento chamado comigo para o lugar das visitas fosse logo Jack, o Estuprador. Ele me perguntou como eu estava, o que talvez seja um bom sinal. Passei duas horas e meia sentado, em vão, naquela sala horrenda de iluminação fluorescente. Jack saiu dizendo: “A coisa não vai nada bem. Os resultados do DNA chegaram”. Ele me contara que tinha sido preso por tráfico, e agora parecia que o tal “DNA” tinha a ver com vestígios de saliva, ou muco nasal, descobertos em algumas notas de 20 libras — coisa que podia acrescentar vários anos à sua sentença.

SEXTA-FEIRA Ida ao tribunal. Você é acordado às seis da manhã. Às vezes não dá tempo nem de escovar os dentes. É preciso levar todos os pertences — você nunca sabe se vai voltar para a mesma cela ou a mesma prisão. É claro que não se consegue dormir na noite anterior. Passa-se por uma revista completa, inclusive uma sonda anal. Parece que os carcereiros gostam especialmente dessa parte, não por motivos sexuais, mas pela completa humilhação que o exame provoca. Não consigo acreditar que alguém que não seja sádico possa ser carcereiro.

Não achava que a minha ida ao tribunal fosse para “confessar”. Mas foi isso que aconteceu. Admiti alguma coisa em troca de desistirem da acusação de “pôr a aeronave em perigo”. Será que eu admiti ter “perturbado a paz”? Ou ter “provocado tumulto”? “Linguagem imprópria?” “Agressão verbal a uma comissária de vôo?” “Embriaguez a bordo de aeronave?” Devia ser isso, embora não houvesse prova de que eu estivesse bêbado: não colheram meu sangue, não me obrigaram a soprar num bafômetro.

Bem, acabou, tudo resolvido. A multa é de 950 libras — duas vezes o preço da passagem aérea.

“Bem”, disse-me o defensor público, quando veio conversar comigo na cela da polícia, “Correu tudo muito bem, não foi?”

“Mas onde é que o senhor acha que eu vou arranjar 950 libras?”, perguntei.

“Ele me pareceu autenticamente espantado — “Ora, mas o senhor não precisa pagar!”

“Como assim?”

“O senhor pode pagar com tempo de prisão.”

“Quanto tempo?”

“Bem, não podem soltar ninguém nos fins de semana, então...” — contou nos dedos — “acho que sairá dentro de nove dias.”

SÁBADO Interessante, acho eu, mas não surpreendente, que assim que a data da liberdade é marcada, a mente volte a funcionar em alta rotação. Xiang, um jovem chinês que chorou no meu ombro no chuveiro numa das minhas primeiras manhãs aqui, me contou que está preso por tentar sair do Reino Unido, e não por viver ilegalmente no país. Estava em Londres havia três anos, e o problema foi que tentou sair do país com um passaporte falso. Está indignado e em desespero — diante de uma pena mínima de seis meses. “Se estão sempre reclamando da imigração ilegal, a coisa certa teria sido me deixarem ir embora para casa!”, disse-me.

Vi Xiang no chuveiro de novo hoje. Prefiro achar que ele tirou toda a roupa porque eu também tirei (a maioria dos prisioneiros não tira, e Xiang não tirou da primeira vez), mas afinal, quem toma banho de cueca? Os muçulmanos tomam. O pudor físico dos homens do Islã é um pouco exagerado, mas tem um elemento religioso. Percebo que muitos deles só estão querendo lavar as cuecas ao mesmo tempo que se ensaboam.

SEGUNDA-FEIRA Como acontece em todos os diários, depois de algum tempo, não tenho mais o que dizer. Penso em Nicolau II e em todos os tipos ingleses tradicionais, que são treinados para manter um journal intime desde a infância, tenham ou não assunto. E então, os relatos do pequeno Nicolau: “Tempo bom. Dois abaixo de zero. Atirei em 60 corvos. Mamãe no chá etc.”.

Um jovem muçulmano chamado Nasar, que pegou de seis a nove anos de prisão, começa a falar sobre o assunto de sempre – a jihad. “Você já viu algum nigeriano cometer um atentado suicida? Matar vocês, nenhum problema, mas não gostamos de nos matar. Vocês acham que somos imbecis?” Não tenho resposta. Ele conclui: “Bem, agora você já sabe como é ser preto”.

QUARTA-FEIRA Último dia em Wormwood Scrubs. Ontem houve uma fuga espetacular. Um “perpétuo” fingiu um ataque epiléptico e, quando a ambulância chegou para levá-lo até o hospital, a 400 metros daqui, um grupo mascarado e armado com fuzis AK-47 dominou os guardas. Aparentemente, é a terceira fuga dele, e agora sabemos por que nos mantiveram trancados ontem à noite.

Tudo está indo muito depressa.

Assino uma infinidade de formulários que me são trazidos por um monte de funcionários.

Hoje à noite, na sessão de tratamento para Aids, um homem de cabelos escuros, barba e olhos maravilhosos, me encara e diz: “Americano. Você é americano. Dá para dizer só de olhar para a sua cara”. Como nunca havíamos trocado uma palavra, não foi pelo meu sotaque que ele descobriu. Respondi em alemão: “Na, Mensch, Du bist verrückt!” E ele rebate: “Ora, deixe disso, você é americano, eu sei perfeitamente”. Eu digo: “Bom, sou, então — e você? O que está fazendo aqui? Esperando por remédios? De que tipo?” Longa pausa. E então ele me diz: “Seu inimigo. Eu sou o seu inimigo”. Esqueci todo o alemão e respondi em voz muito alta: “Não o meu inimigo! Meu, não!” E ele: “Então sou inimigo do seu país. Sou iraniano”. Eu continuo exaltado: “Bem, pode ser, mas eu não tenho nada com isso — nada a ver!” Ele ri: “Ah, já o seu presidente Bush...”

Fico terrivelmente perturbado. E ele: “Brincadeira. O povo do Irã ama o povo americano. O povo da América ama o povo iraniano”. Retomo a história do casamento do meu pai com uma muçulmana: “O Islã está na minha família”. É impressionante o efeito que isso produz nos muçulmanos; um dia eu devia mesmo escrever sobre isso, a sério. Por enquanto, recebo meus remédios, ele recebe os dele, e não tornamos a nos ver.

Até ser solto em janeiro, só pude manter comunicação com o mundo exterior através do meu advogado e da embaixada americana. Fui parar numa prisão de Londres onde boa parte dos detentos é composta de negros e islâmicos. Uso o termo “negro” (“black”) à moda britânica, para designar qualquer pessoa de pele mais escura, e escolhi esse termo justamente porque ele reflete a atitude dominante nos dias de hoje no Reino Unido com relação aos “imigrantes” em geral e aos muçulmanos em particular. Um guarda da prisão chegou a me aconselhar a não mais dizer “Grã-Bretanha” (“Britain”). “Somos ingleses, galeses, escoceses, irlandeses e um monte de muçulmanos. Lembre-se disso”, disse ele.

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